Por uma geografia dos espaços vividos

2021 
A fenomenologia enquanto instrumento teorico para estudar a experiencia geografica tem sido objeto de um renovado interesse que esta intrinsecamente ligado ao desenvolvimento de novas abordagens e conceitos fenomenologicos. Por um lado, a Nova Fenomenologia germânica tem vindo a construir uma concepcao da experiencia humana como uma experiencia do espaco-tempo, principalmente atraves do conceito-chave de atmosfera. Por outro, alguns filosofos francofonos e anglofonos tem vindo a ser considerados pos-fenomenologicos por apresentarem uma conceptualizacao mais relacional do sujeito. Embora diferentes, estes avancos vieram reafirmar a fenomenologia como um exercicio eminentemente geografico, no sentido em que defendem que o estudo dos fenomenos da consciencia nao pode ser conduzido sem ter em conta como a consciencia emerge em relacao com o mundo, com os lugares, com o espaco-tempo. Assim, nao so a fenomenologia passa a preocupar-se com a estetica dos espacos e as suas relacoes sociais, como tambem os conceitos fenomenologicos se tornam mais apropriados para descrever a relacao ser humano-planeta, que e um dos objetivos historicos da geografia (Ash & Simpson, 2016; McCormack, 2017). Ainda assim, o florescer das geografias pos-fenomenologicas tem sido acompanhado por comentarios criticos pertinentes. A principal critica e dirigida ao tom universalista que se encontra no estilo abstrato da escrita que e frequentemente incapaz de conceber como a experiencia do mundo se diferencia conforme se diferenciam os corpos e os espacos. Por exemplo, a concepcao de sujeito das geografias pos-fenomenologicas poucas vezes tem em consideracao as maneiras como diferentes sujeitos sociais (por distincoes de genero, etnia, nacionalidade, condicao social, etc.) tem diferentes sentidos de estetica, epistemologias, e mundividencias que geram diferentes modos de ser-no-mundo e ser-com (Tolia-Kelly, 2006). Relacionado com isto, as geografias pos-fenomenologicas tem-se, nao raras vezes, ancorado nos fenomenos que nao sao experienciados conscientemente (chamados nao-representacionais) para afirmar um certo carater impessoal (ou a-pessoal) da experiencia do mundo. O problema desta abordagem e que este carater impessoal da experiencia do mundo so pode ser afirmado ao se apagar a complexa relacao entre os fenomenos nao-representacionais e as subjetividades, relacoes, historias e contextos que se entrelacam no devir de momentos afetivos particulares (Anderson, 2019; Wetherell, 2015). Esta questao torna-se particularmente pertinente dado que as geografias pos-fenomenologicas se tem proposto a abordar questoes politicas, ao contrario das geografias fenomenologicas de cariz humanista que tendiam a afastar-se desses temas. Tendo estas limitacoes e perigos presentes, um numero consideravel de geografos tem-se dedicado a imaginar uma fenomenologia critica que seja capaz de abordar temas politicos sem emudecer as diferenciacoes entre os sujeitos que estuda. Entre as varias propostas, tem-se destacado o impacto do novo materialismo, especialmente o campo emergente de estudos sobre politicas viscerais, que se debruca sobre como as ideias e ideais politicos emergem atraves de experiencias corporais (sensoriais, cognitivas, emocionais, mas tambem de violencia ou de disciplina). Por outro lado, desenha-se um entrelacamento entre as geografias pos-fenomenologicas e as geografias criticas ancoradas em pensadores do espaco como Henri Lefebvre ou Gilles Deleuze (ex. Kinkaid, 2020a, 2020b; Simonsen & Koefoed, 2020). Angelo Serpa (2019) apresenta uma outra alternativa para uma geografia fenomenologica critica no seu livro mais recente: Por uma Geografia dos Espacos Vividos, publicado em Sao Paulo pela Editora Contexto. Este livro deve ser contextualizado no irromper de um redescobrimento da geografia humanista no Brasil que se vem desenrolando gradualmente deste o inicio do seculo. Para tal, tem contribuido as atividades do Grupo de Pesquisa Geografia Humanista Cultural, constituido em 2008, que tem ligado os investigadores interessados em epistemologias humanistas, e a sua revista Geograficidade, inaugurada em 2011, onde se tem publicado com regularidade estudos de geografia cultural com abordagens fenomenologicas. Este interesse na geografia humanista partiu inicialmente de um redescobrimento no sentido literal, com a publicacao de estudos historicos sobre a epistemologia geografica humanista, mas tem igualmente levado a uma exploracao de novos temas e novas abordagens, como o atestam, a titulo de exemplo, o numero especial da revista Espaco e Cultura sobre “Geografia dos Sons e Literatura”, ou o numero especial da Revista Geografia em Atos sobre “Afetos e emocoes: abordagens teorico-metodologicas na analise do Espaco Geografico”, ambos publicados em 2019 (Holzer, 2016; Lamego & Novaes, 2019; Marandola Jr. et al., 2012; Neto, 2019). A proposta de Serpa retorna a autores classicos da fenomenologia como Edmund Husserl, Maurice Merleau-Ponty, Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre e Gaston Bachelard, recuperando a reducao fenomenologica como metodo de investigacao sobre a experiencia da paisagem. Combina ainda estes autores com pensadores criticos do espaco como Milton Santos, Henri Lefebvre, Rogerio Haesbaert, David Harvey e Karl Marx, salientando os processos de construcao de paisagem e as suas intencoes politicas, e afirmando a necessidade de situar o estudo fenomenologico da experiencia da paisagem no contexto da producao (politica) dessas paisagens. A bibliografia ecletica de Serpa estende-se ainda para alem deste encontro entre fenomenologia classica e critica espacial, recuperando tambem a filosofia de Friedrich Nietzsche e Jurgen Habermas, e a geografia humanista de Eric Dardel e Edward Relph. Assim, Serpa propoe o estudo da vivencia humana a partir de uma perspetiva que combina o estudo intersubjectivo da experiencia e o estudo critico da producao dos espacos que providenciam experiencias. O autor mostra como esta abordagem pode ser aplicada a pesquisas sobre lugares, territorios, paisagens e regioes, considerando que estes nao sao apenas conceitos geograficos abstratos, e que podem ser entendidos como modos geograficos da existencia humana. Esta abordagem vai ao encontro da transicao para um entendimento mais performativo dos principais conceitos da geografia que se tem verificado na disciplina, nomeadamente na transicao da ideia de lugar para lugar-como-evento, de territorio para territorializacao, de espaco para espaco-tempo, e de regiao para regionalidade. Ao situar estes conceitos como modos geograficos da existencia humana, Serpa indica o quotidiano como o espaco-tempo chave para questionar a producao dos espacos e das suas representacoes. Combinando a analise da experiencia e da producao espaciais, Serpa encontra no corpo humano um instrumento fundamental para abordar esse espaco-tempo chave. Mais precisamente, e o conceito de inspiracao nietzschiana de corpo-poesia que e avancado como fundamental para abordar o quotidiano. O corpo-poesia refere-se ao corpo praticado, a expressao da sensacao do corpo como expressao artistica, nas palavras de Serpa (2019, p. 115), “a apropriacao do corpo total e, logo, do espaco”, que surge em oposicao a uma expressao abstrata, intelectual, do corpo. A partir de Henri Lefebvre, Serpa discute esta dialetica entre o abstrato, associado ao pensamento e a linguagem, e o concreto, que se refere ao sentido, ao experienciado, ao vivido. Serpa propoe uma fenomenologia concreta que emerge deste corpo-poesia e nao da teoria abstrata. Esta fenomenologia concreta, perscrutada a partir do corpo no quotidiano, estara entao no cerne dos espacos vividos, uma posicao privilegiada para entender as diferenciacoes da experiencia geografica. E importante sublinhar que Serpa apresenta a fenomenologia nao como um fim em si, mas como um metodo para saber mais sobre os espacos que vivemos, e para questionar. Ainda que o potencial da fenomenologia nao se esgote numa unica abordagem, a fenomenologia concreta de Serpa oferece-nos uma rota alternativa em direcao a uma geografia com uma maior capacidade de incluir diferentes experiencias e mundividencias e, nesse sentido, uma geografia mais polivocal.
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